SANTA
IRACEMA
Um conto de Vital Etienne
Arreguy.
Quando morreu dona Iracema, o
coronel demorou para se consolar. Por vários dias não saiu de casa, só quem o
via eram os criados, muito pálido, a barba por fazer, sem pronunciar palavra.
Disseram que ia entrar para o convento. Não recebia visitas e não queria ver o
filho recém-nascido, como se o pobre menino tivesse culpa de haver causado a
morte da mãe. Pobre seu Carmelo, era tão boa dona Iracema...
Isso durou quase dois meses. Aí, um dia, ele mandou chamar o Conceição:
Conceição era um caboclo muito alegre e meio doido que morava ali por perto,
numas terras que ninguém sabia de quem eram. O coronel tinha pretensões sobre
essas terras, como muita gente. Dizem até que pagou ao tabelião para forjar um
título. O Conceição dizia que as terras pertenciam ao "exército do
governo" e que ele só tomava conta.
Foi por causa disso que o Conceição se alarmou quando soube da notícia do
chamamento do coronel Carmelo. Tendo este fama de violento, de muitas façanhas,
espalhadas pelo mundo, umas de verdade, outras de mentira, muita gente já
aconselhara o Conceição a não demandar com ele, "quem tem dinheiro, a
corda arrebenta". E para quê conselho, lá ele era homem de demandar com
coronel? O coronel que lhe avisasse e ele puxava dali, faz tempo mesmo que
estava para ir a São Paulo, para procurar um irmã que ele nunca tinha visto e
que diziam que morava lá.
Se bem que para o coronel Carmelo não ia adiantar nada, porque mais tarde
vinham os exércitos, que têm gente de muito mais força, patente e dinheiro que
ele, que era coronel, mas coronel de roça, sem quartel e estrelas. Não fazia
questão, as terras não eram dele, só zelava delas, por promessa feita e por
documento que se perdera. Não tinha nada a perder. Homem que não tem nada, mora
no mundo, não há ainda tabelião que lhe garanta o chão. E nem santo que lhe
negue saúde, tempo bom, comida e agasalho. Nem reza que lhe assegure mais do
que isso.
Sabe Deus quantas outras quimeras.
Conceição montou no burrinho e lá
foi. Péssima hora pra discutir com o coronel, homem velho e feio que casou com
mulher bonita e moça, e que morreu de primeiro parto. Homem poderoso, que não
era acostumado com desgosto. E homem violento, embora sempre tivesse
considerado a gente, até tirando o chapéu, quando passava. Coitado, que adianta
dinheiro.
Chegando à fazendo do coronel, houve uma dúvida. Não era melhor ir embora sem
parar, deixar essas malditas terras para esse diabo, que já tem tantas? Para
que enfrentar esse bicho, Conceição? Pegar o touro a unha, procurar chifre em
cabeça de cavalo, cotucar a fera com vara curta? Pescar em águas turvas?
Ou o que é do homem, bicho não come? Quem não arrisca não petisca. Homem que é
homem não tem medo de cara feia!
Conceição bateu à porta, um pouco pronto para pular de volta e sumir no mundo
com seu burrinho. São Paulo.
Mas o coronel Carmelo que veio abrir era um homem diferente daquele imaginado.
Homem abatido, parecia incapaz de discutir negócio de terra, muito menos de
brigar por isso. Foi mandando sentar e, indo direto ao assunto, interrogou o
Conceição.
- Conceição, você faz santo?
Perguntado assim em cheio. Faz santo. Alguém faz santo afora Deus? Conceição
percebeu, então, que era uma de suas estórias, que tinha sido santeiro e que
nunca mais fizera nenhuma imagem de barro ou de madeira, por uma promessa que
tanta gente achava descabida. Santeiro, já fôra mesmo? Quimeras.
- Bem, seu coronel, tenho promessa de não fazer. Se vossa pessoa carece de um
santeiro, conheço muitos, mas não é o criado vosso o acertado.
- E se eu precisar de um santo, uma santa, você me arranja quem faça?
Conceição coçou a barbinha. Em que eras, já vira um santeiro? E santeiro é
coisa tão difícil hoje em dia. E coisa tão difícil é ligar-se ao passado quando
se rompeu, mesmo com o presente.
- Demanda campear, demanda viagem. Santeiro é gente que corre mundo. Faz um
santo para uma igreja aqui, uma capela ali. O que faz vai vendendo, ou
trocando, Deus me perdoe, que santo não se vende.
- Pois Conceição, você vai me arranjar uma imagem, onde houver uma, sem
precisão de economias. O coronel falava como um homem que, derrotado numa
batalha e perdido tudo, precisava de reorganizar suas forças, a partir de uma
imagem ainda em projeto, mas já irresistivelmente milagrosa.
- Faz a viagem que for preciso e me traz uma imagem de Santa Iracema, que vou
mandar erguer uma capela a esta Santa. É uma homenagem que presto à falecida
minha mulher.
Conceição se propõs. De certo. Um desejo de seu coronel, homem de tanta
circunstância, era ordem para ele. Pensou em dizer: "Sobre aquelas terras
da árvore queimada", seria momento propício. Mas não. Se hoje chove prata,
amanhã chove ouro. Cavalo, dinheiro, tudo para a viagem - até chapéu, e isso
era um velho desejo - o coronel lhe garantia. E viagem era coisa que encantava
o Conceição, já viajante experimentado de sonho e cavaco.
A viagem se fez. Conceição, de
cavalo grande e chapéu, falava difícil, dizia que era segunda pessoa e segundo
tenente de um homem muito rico, certo coronel Carmelinho, sendo esse
diminutivo, jamais outrora usado, motivo de muita segurança e muita narrativa
assustadora. Mas santeiro é coisa que não existe mais. Seria possível tentar
ele mesmo fazer uma santa, ele que já tinha sido santeiro - mas tinha mesmo? E
além disso havia promessa - bate na boca, homem.
E assim foi passando o tempo, a capela ia ficando pronta lá longe, na fazenda,
que já chamava Santa Iracema. Só faltava a Santa, que fosse habitar seu lugar
suntuoso no altarzinho. Conceição corria mundo. Um dia chegou a uma chácara que
lhe indicaram como sendo de uns velhos que tinham muitos santos. Conceição
bateu à porta e a velhinha veio atender.
- Se é filho de Deus, pode entrar que nossa casa é de seus filhos - disse a
velha quando Conceição disse que tinha um assunto a tratar.
E não se deve omitir o detalhe - a essa hora ele já tinha bebido bastante (um
costume que ele só adquirira agora que era segunda pessoa) e destilava pela
boca um cheiro fétido de alambique.
Mais se consentia:
- Sou o coronel Conceição das Boaneves, falado homem das fazendas do governo.
Venho em nome de Cristo, por um caso de santo.
- Louvado seja. Entra meu filho.
A velha abriu a porta e ele entrou. A casinha só tinha um cômodo, com uma cama
grande, onde um velho, muito branquinho de cabelo e barba, rezava o terço.
E nas paredes - para encanto de
Conceição - centenas, milhares de estampas, nichos, lampadários; estatuário
infindável de santos e santas e corações de Jesus e de Maria, Virgens com o
Menino e sem o Menino, e Anjos, Arcanjos, Serafins, Querubins: a Brigada
Celeste. Ali estaria também Santa Iracema. Devera.
- Não. A resposta da velha cortou o coração de Conceição.
- Acho que aqui temos Santa Filomena. Mas Santa Iracema - seja louvada na paz
de Deus - não temos. E pegando uma imagem entre outras (quantas!), mostrou a
Conceição:
- Esta aqui é Santa Filomena.
O velhinho na cama protestou que era Santa Helena ou Santa Madalena e voltou a
rezar o terço.
Conceição examinou a imagem. Perfeita para o altar de Santa Iracema. Até não
teria um ar da falecida Dona Iracema? Com certeza aquela imagem de madeira,
pesada e bonita, faltando só um polimento e um verniz, era a ideal. Era a sua
Santa Iracema, a imagem certamente imaginada pelo seu amigo Castelinho - que as
intimidades agora estavam neste pé.
Propôs o silêncio à velha, trocar a Santa por algum dinheiro - pouco sobrava -
ou pelo que fosse.
Diante da recusa da velha, foi-se enchendo de arrogância, que era homem
importante, que mandava em soldados e tenentes, que tinha terras suas e que o
governo lhe confiava, que...
- Meu filho, porque o senhor bebe tanto, homem tão apresentado.
Que ninguém tinha nada com isso, que só prestava contas ao Coronel Carmelinho,
que andara meio mundo para procurar uma imagem como aquela, que não era
qualquer um que ia impedir que ele levasse, que precisava para pagar promessa.
A imagem era para pagar promessa.
Pois como é para pagar promessa, levasse a santa e nada devia, só que rezasse
pela sua pobre alma e a do velho. E que fizesse uma outra promessa, de não
beber mais, que é coisa do diabo.
Conceição prometeu, concordou que cachaça é coisa malina que o diabo põe na
nossa frente, contou casos de desgraça em famílias e de aparições para homens
maus que viviam embriagados. Deus castiga.
E levou, sem insistir muito no pagamento, a sua santa, Santa Iracema.
Quando o Conceição - que agora se
intitulava Tenente Boaneves ou Coronel Boaneves, dependendo dos circunstantes -
chegou a Santa Iracema, trazendo a imagem, o Coronel Carmelo já não era mais o
homem vencido que lhe dera cavalo, dinheiro e chapéu (e disso tudo só restava o
chapéu), para sair pelo mundo a busca de santo. Já recobrara a carranca de seus
bons tempos e havia até mesmo mandado ocupar as terras de Árvore Queimada, do
exército, do caboclo Conceição, a quem dava por desaparecido (quantos meses se
passaram? dois? seis? dez?). Diziam até que estava querendo casar de novo.
Foi este homem duro e ressentido que recebeu, recriminou e rebaixou o já não
Boaneves, à condição de Conceição sem terra e sem sobrenome, agora devedor de
um cavalo. A Capela estava pronta, mas passada a dor-de-viúvo, já não tinha
significado. A santa foi para o altar, o Conceição, triste e desanimado como
homem que trabalha pra pagar cavalo, ficou encostado por ali, sem nunca
entender como alguém que já foi tão rico e tão respeitado podia acabar assim. E
o povo ia de vez em quando rezar na porta da capelinha, pedir coisas à Santa, à
linda e enclausurada santa - Santa Iracema.
padre chegou e disse ao coronel da
intenção do bispo de que fossem rezadas missas em todas as capelas do bispado,
por menores que fossem, pelo menos uma vez por mês. Era um padre novo e o
coronel não o recebeu bem. Não que não gostasse de padres, já havia se casado
duas vezes na igreja e era homem temente a Deus. Mas preferia que fossem como o
velho vigário que se limitava a pedir frangos para quermesse ou contribuição
para alguma obra de caridade, sem nunca por os pés na fazenda. E o que mais
irritava o coronel Carmelo com aquela visita é que a colheita tinha sido muito
grande e ele estava usando a capela como depósito de milho. Que o padre não
quisesse visitar o paiol sagrado...
- Ao que consta, esta capela não foi ainda consagrada.
- É, padre, não houve ainda oportunidade. Depois, demorou tanto para conseguir
uma imagem de santa...
- E quem é a santa padroeira?
- É Santa Iracema.
- Santa Iracema?
- Sim, em homenagem ao nome da minha primeira esposa.
- Mas não existe santa Iracema. O padre falava muito complicado, num som
metálico e irritante.
- Não existe, como não existe? O coronel mandou chamar o Conceição e soube que
ele tinha desaparecido havia tempo; dizem que foi para São Paulo.
- Não existe. Iracema é um nome tupi-guarani e nunca índia nenhuma foi
canonizada.
- Índia? Então o senhor está dizendo que minha mulher era uma índia?
- Não. Quero dizer que Iracema não é nome cristão. Aliás, dizem que é nome
inventado por um escritor, com as letras da palavra América. Veja bem - e
tirando da bolsa um bloco e uma caneta, o padre escreveu A-M-É-R-I-C-A, e
soletrando I-R-A-C-E-M-A, foi riscando as letras, até que não sobrou nenhuma.
O coronel Carmelo olhava aquilo tudo sem entender o que tinha a América a ver
com a sua primeira mulher, com sua capela, com coisas de santa, enfim. O padre
tinha as mãos muito brancas, de dedos muito compridos, que o fazendeiro olhava
com nojo. A voz e as mãos do padre já eram motivo suficiente para evitar-se que
ele presenciasse o anátema: um templo do Senhor - como o padre certamente diria
- atulhado de sabugos de milho.
- Pois se o senhor vem à minha casa para dizer que minha mulher não tinha nome
cristão, não me interessa quantas letras tem esse nome, nem quantas missas o
senhor quer rezar. Recebi o senhor como se recebe um ministro de Deus, mas com
essas conversas, o senhor não é benvindo. É favor se retirar e não tenho mais
nada a conversar.
E o coronel foi para dentro,
deixando só na sala o padre, muito encabulado, indo-se embora sem direito a
missa e procissão, sem sequer ver a capela, sendo que o bispo deu-lhe o
conselho de não insistir, para evitar complicações com o coronel. E mais tempo
a capela ficou fechada, depósito após as fartas colheitas, guardando a doce e
serena imagem da Santa Iracema.
E se toda essa história se contou,
não seja em vão. Pois pode se concluir dela que o povo - povinho humilde e
pobre de Santa Iracema e de tantas terrinhas de Santos e Santas (mil vezes
abençoadas!), desses mundos e fundos do Brasil - o povo, no fim, é quem sabe.
Pois agora, a capela rodeada de casas tem missa todo domingo. O coronel morreu.
O filho do primeiro casamento, criado longe dali, sem amor nenhum à terra, foi
vendendo o que herdou, aos poucos. A viúva e as filhas do segundo matrimônio
também venderam o que tinham.
Há casas - quase uma aldeia - em torno da capela. Capelinha pintada de novo com
sua linda Santa, agora santa mesmo, com nome não só uma única vez no
martirológio. Isso porque a gente do povo - gente tão sábia - em sua sábia e
necessária economia de energia, há muito já chamava o lugar de Sant'Ema.
Sant'Ema abençoe esse povo - que bem precisa - amém!
VITAL ETIENNE ARREGUY, 1969.Obtido em 26 de novembro de 2003
Postado em 13 de março de 2023
O que trata a História?
Essa história nos mostra como a arte pode ter um impacto profundo na vida das pessoas, mesmo quando elas não esperam. No caso do coronel Carmelo, a imagem de Nossa Senhora da Conceição feita por Conceição teve um efeito transformador em sua vida. Após conversar com Conceição e entender a importância da humildade e da simplicidade na vida, o coronel mudou sua visão de mundo e passou a valorizar mais as coisas simples e importantes da vida.
Além disso, a história também mostra como pequenos gestos podem ter um grande impacto na vida das pessoas. Conceição aceitou fazer a imagem da santa para o coronel mesmo após ter abandonado sua vida de santeiro. Essa atitude acabou sendo o início de uma amizade e uma parceria importante, que levou à mudança de vida do coronel e ao cuidado amoroso que Conceição deu ao filho do coronel após sua morte.
Por fim, a história nos ensina a importância de cuidar uns dos outros e de transmitir valores positivos para as gerações futuras. Conceição cumpriu sua promessa de cuidar do filho do coronel, ensinando-lhe valores importantes e ajudando-o a se tornar um homem bom e honesto. Essa atitude mostra como pequenos atos podem ter um grande impacto na vida das pessoas e na sociedade como um todo.